“Qualquer palavra que se dissesse contra os métodos utilizados pela cruel ditadura era praticamente uma condenação de morte”, afirma o padre palotino Mariano Pinasco
Por: Bruna Quadros
“Melhor que,
diante do que estamos fazendo, fiquem quietos, calem.” Eram frases deste teor
que ditadores argentinos lançavam sobre membros da comunidade palotina de San
Patricio, no período de repressão que assolou o país, diante de crimes que vão
desde tortura até a morte. Um dos motivos para esta perseguição talvez
estivesse no comprometimento claro e profético dos palotinos, diante do momento
que a Argentina vivia, conforme aponta o Prof. Dr. Pe. Mariano Pinasco,
religioso palotino, em entrevista concedida por e-mail à revista IHU On-Line.
Em 4 de
julho de 1976, cinco dos religiosos que integravam a congregação foram
brutalmente assassinados. Para Pinasco, os assassinos do Massacre de San
Patricio, na Argentina, queriam uma Igreja que ficasse quieta, que não
denunciasse a tragédia que a sociedade estava vivendo. A memória destes grandes
mártires do século XX continua viva, nos dias de hoje. “O sangue derramado por
essa comunidade poderá ser o alicerce para a construção de uma nova sociedade
com um jeito também diferente de ser igreja. Uma igreja que volte às suas
origens, comprometida até a morte com o ser humano.”
Mariano
Pinasco estudou
Filosofia e Teologia no Colégio Máximo Palotino de Santa Maria (RS). Em 1990,
foi ordenado sacerdote da comunidade palotina. É doutor em História
Eclesiástica, pela Universidade Gregoriana de Roma, na Itália. Atualmente, é
professor da cátedra de Historia no curso de Teologia na Faculdade Palotina de
em Santa Maria (RS) e presidente da Comissão Histórica dos Palotinos, sediada
em Roma, Itália. No dia 5 de setembro, ele estará na Unisinos para participar
do evento Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja
Latino-Americana, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Durante a atividade, será exibido o documentário 4 de julho, dirigido
por Juan Pablo Young e Pablo Zubizarreta, no Auditório Central da Unisinos.
IHU On-Line
- Por que os palotinos foram assassinados no Massacre de San Patricio?
Mariano Pinasco - Existem várias teorias ou
especulações sobre o crime cometido contra a comunidade palotina de San
Patricio. Uma delas seria o fato de dar um golpe contra a Igreja Católica em
geral, quer dizer, uma mensagem para a Igreja no começo da cruel ditadura militar
sofrida na Argentina: “Melhor que, diante do que estamos fazendo, fiquem
quietos, calem”. Outra linha de pesquisa nos pode conduzir ao próprio
testemunho que a comunidade dos cinco religiosos dava nas tarefas
evangelizadoras por eles realizadas, especialmente por alguns dos seus membros,
mas certamente não foi um fato isolado dentro do contexto de morte e destruição
que a sociedade Argentina vivia a partir da violência sistemática gerada desde
um Estado repressor.
IHU On-Line
- Que posturas políticas eles tinham para serem perseguidos pela ditadura
Argentina?
Mariano
Pinasco –
Certamente, alguns dos membros dessa comunidade tinham um compromisso claro e
profético diante da situação de regime militar que estava se vivendo na
Argentina. Qualquer palavra que se dissesse contra os métodos utilizados pela
cruel ditadura era praticamente uma condenação de morte. Desde o púlpito da
paróquia de San Patricio, se denunciavam os fatos terríveis que estavam
acontecendo na Argentina e isso foi feito na frente de uma congregação composta
por fiéis que, em muitos dos casos, ocupavam lugares de privilégio na
sociedade, num dos bairros mais ricos da cidade de Buenos Aires. Essas
denúncias certamente originaram mais de um comentário nos círculos fechados que
apoiavam a ditadura militar e isso ajudou para que a comunidade fosse “marcada”
para morrer.
IHU On-Line
- Quais eram suas atividades na Argentina?
Mariano
Pinasco - A
comunidade era composta de três sacerdotes que se ocupavam do trabalho pastoral
tipicamente paroquial urbano e, além disso, o Pe. Alfredo Kelly, pároco de San
Patricio, era o diretor de uma importante escola de catequistas em Buenos
Aires. A comunidade palotina de San Patricio estava também composta pela
comunidade de formação, ou seja, os seminaristas da congregação, que eram seis
– dois deles assassinados. A paróquia era muito ativa, e os jovens ocupavam um
lugar de destaque nas atividades paroquiais. Uma das legendas que os assassinos
picharam nas paredes da casa paroquial na noite do crime, como um motivo
justificativo do horrível fato, referia-se justamente a eles: “por perverter as
mentes virgens de nossos jovens”. Isso também indicaria um dos motivos do
crime.
IHU On-Line
- Como, quando e por que vieram para esse país?
Mariano
Pinasco - Os
palotinos chegaram à América do Sul em 1885, seguindo as pegadas da imigração
italiana da Quarta Colônia, no Rio Grande do Sul, e se estabeleceram no
Uruguai, quando foram convidados a assistir, religiosamente, aos imigrantes
irlandeses que se encontravam nas pampas argentinas, assumindo trabalhos
paroquiais e na área da educação através da fundação de diversas escolas. Pouco
a pouco, foram assumindo trabalhos, não só com os imigrantes irlandeses, mas
começaram a se comprometer nas atividades com toda a sociedade Argentina.
IHU On-Line
- Quais foram as circunstâncias em que ocorreu o Massacre de San Patricio?
Mariano
Pinasco - O
massacre de San Patricio se origina num contexto que não escapa do contexto que
a América Latina viveu na década dos anos 1970. A partir de março de 1976, foi
derrubado o governo democrático na Argentina - na época, o país era presidido
por Isabel Perón e passou a ser comandado por Jorge Rafael Videla -
e começou uma sangrenta ditadura encabeçada pelos militares. A partir daí, começa
a execução de um plano sistemático de repressão e de extermínio de tudo aquilo
que era participação popular na vida política, no mundo do trabalho e na ação
de social. Instaurou-se o terrorismo de Estado que reprimiu, desapareceu e
assassinou um bom numero de cidadãos, como parte de um plano muito bem pensado.
Foi certamente um regime de terror que silenciou e edificou uma sociedade cheia
de medos. Anos de terror se instalaram numa sociedade que durante quase oito
anos viveu perseguida, silenciada e paralisada pelo medo.
IHU On-Line
- Como a igreja argentina trabalha a memória do Massacre de San Patricio?
Mariano
Pinasco - Na
verdade, uma das teorias que indicam que o crime cometido contra a comunidade
palotina foi um sinal de advertência para toda a igreja argentina parecia estar
muito acertada, pois obteve muito efeito. Um mês depois do massacre da
comunidade palotina, no dia 6 de agosto de 1976, foi assassinado o bispo
Angelelli de La Rioja, no norte argentino, e leigos, catequistas, irmãs e
padres de diferentes regiões também foram desaparecidos ou mortos ao longo do
regime. Isto fez com que também o medo se apoderasse de muitos dos referentes
da igreja Argentina, paralisando-os, fazendo justamente aquilo que buscavam os
assassinos, isto é, uma igreja que fique quieta, que não denuncie a tragédia
vivida pela sociedade. Outro capítulo amargo desta história certamente foram os
que desde o ministério pastoral apoiaram abertamente a metodologia e a
ideologia do sistema ditatorial vigente. Neste sentido, ainda como comunidade
católica estamos em dívida na Argentina, pois nunca se assumiu o fato de que
muitos dos membros, da hierarquia e não só, foram cúmplices do regime
terrorista através do silêncio e até houve alguns que apoiaram o regime ilegal
publicamente. No caso particular da comunidade palotina assassinada,
começou-se, há quatro anos, com o processo canônico para o reconhecimento
martirial oficial por parte da Igreja, um processo que levará tempo mais que
certamente será uma oportunidade para resgatar a memória, não só dos cinco
membros da comunidade palotina, mas também de tantos eclesiásticos e leigos que
derramaram o seu sangue com a esperança da construção de uma sociedade mais
justa, mas solidária e mais fraterna. Esperamos que a memória de todos eles
seja resgatada e colocada no lugar que merecem, pois, como dizem por aí, “um
povo que esquece sua memória é um povo sem futuro”.
IHU On-Line
- Qual é o principal legado humanitário e político desses religiosos mortos
pela ditadura argentina?
Mariano
Pinasco – O legado
que nos deixaram os cinco religiosos de San Patricio foi o seu testemunho de
vida diante de uma sociedade cheia de sinais de morte ao seu redor. O
testemunho deles certamente será semente de vida, o seu sangue será o adubo
para muitos que seguindo esse testemunho não se calarão diante das injustiças.
O sangue derramado por essa comunidade poderá ser o alicerce para a construção
de uma nova sociedade com um jeito também diferente de ser igreja. Uma igreja
que volte às suas origens, comprometida até a morte com o ser humano. Muito
interessante foi a experiência de ouvir os testemunhos das pessoas que tiveram
a oportunidade de assistir ao documentário 4 de julho, principalmente daqueles
que se consideram ateus, muitos deles diziam: “Nunca imaginamos uma Igreja
assim”. Tenho certeza de que o sangue derramado por estes mártires do século XX
brotará por algum lugar na nossa sociedade, gerando uma espécie de experiência
de ressurreição, de experiência pascal.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2105&secao=271
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