Misericórdia e respeito pela vida
Queridas irmãs e irmãos da UAC, depois que Papa Francisco proclamou o Ano
Santo da Misericórdia, o Secretariado Geral pediu-me, uma contribuição para “Apóstolos
Hoje”, com uma reflexão sobre “Misericórdia e respeito pela vida (num sentido
mais amplo)”. Eu aceitei, também porque o tema me interessa. Contudo,
passaram-se alguns meses e eu não sei francamente o que escrever. A palavra
misericórdia não possui uma grande expressão na nossa linguagem diária; na verdade,
na Igreja, foi usada quase que abusivamente. E agora preciso dar minha opinião
a respeito. Ao mesmo tempo sei que, por natureza, tenho tendência a fazer
perguntas, mais do que dar respostas comprometedoras. Talvez me escolheram para
este tema, porque tenho uma relação especial com “a vida”, e, por causa do meu
trabalho como médico minha reflexão vem mais da experiência de vida, do que do
pensamento teológico. Então, quero partilhar com vocês os meus pensamentos, as
perguntas e os esforços para oferecer ideias.
Quando escrevo sobre um tema, gosto de começar
consultando o dicionário etimológico, o qual explica a palavra alemã “erbarmen”
como “ser misericordioso”, isto é, “livre de pobreza, de infelicidade, de sofrimento,
de privações”, ou no sentido mais geral, “da solidão”. Na língua alemã, o termo
tem, por isso, uma característica muito ligada à caridade. Em Hebraico a
palavra misericórdia é “hesed”, refere-se a “útero”, e por isso, nascimento,
criação, é diretamente associada à vida. Na nossa existência e considerando a
história do mundo, percebemos que a vida possui, em si mesma, situações de
angústia, de sofrimento e de morte. Porque é assim? Porque Deus onipotente e
bondoso criou o mundo frágil? São perguntas sobre as quais muitos teológos quase
fundiram o cérebro; e nem eu encontrei uma resposta que seja verdadeiramente satifatória.
Deus criou o mundo por amor, e, por
misericórdia o resgatou. Nós sabemos e interiorizamos esta verdade de fé. Mas,
eu tenho dificuldade de considerar-me amigo de um Deus que, no entusiasmo do
seu primeiro amor, criou um mundo – e Ele percebeu – que era muito miserável,
tanto que precisou interferir novamente para concluir uma obra não tão bem
sucedida. (Talvez isto possa parecer um tanto superficial e não suficientemente
respeitoso, mas acontece que esta é uma das objeçöes mais frequentes de muitas
pessoas – que tem uma visão crítica da nossa fé cristã – e eu desejo levar a
sério estes irmãos e irmãs).
Nós acreditamos que os seres humanos são
criados por Deus, são criaturas, e por isso, muito diferentes de Deus; não
onipotentes, não infinitas, não eternas. Cremos, porém, que somos criados à
imagem de Deus, e esta imagem é renovada pelo fato que Deus nos concedeu a
liberdade, o conhecimento, a criatividade e o domínio sobre o mundo. Nós não
somos Deus, mas, ao mesmo tempo, cada um de nós é feito unicamente à imagem de
Deus. Esta é a única glória que pode transformar a nossa miséria, cada vez que
abandonamos esta imagem e decidimos, através de palavras, gestos e atitudes,
que somos maiores do que Deus, queremos viver a nossa vida – toda ou em parte –
sem referimento ao chamado do seu infinito amor, que está gravado no mais íntimo
do nosso ser. Aqui está a raiz do nosso pecado, desde a origem da humanidade
até hoje. Nós seres humanos conhecemos este dilema da nossa glória e da nossa
miséria, que está realmente no coração da nossa existência, da nossa
experiência.
Compreendo este dilema, somente quando
considero a criação como algo ainda não concluído, não completo. O que para nós
criaturas, acontece agora, para Deus – que é fora do tempo – é um ser criado “desde
a eternidade para a eternidade”. Esta é a única maneira com a qual posso explicar
a mim mesmo a narração bíblica da criação, no início do “nosso” tempo, quando
Deus viu que tudo é bom, verdadeiramente muito bom, e depois quando Paulo
escreve a Igreja de Roma: “a inteira criação sofre e geme em dores de parto” e está
ainda em processo de tornar-se melhor, aliás, muito melhor, no sentido mais pleno.
O amor do Pai Criador é eterno, e nesta eternidade Ele cria por amor o mundo, a
vida, os seres humanos à sua imagem. No Filho, a criação já é antecipada, como
narra o Prólogo do Evangelho de São João. Ele é, falando agora em termos
humanos, o início e o fim da criação, a sua origem e destino. Com sua
Encarnação Ele conduz e acompanha a humanidade durante o tempo da imperfeição.
A natureza que sustenta tudo isto é a misericórdia, o amor encarnado de Deus,
que flui na criação. O fruto do amor é a criação, o fruto da misericórdia é a
recriação, a criação nova, ou, mais compreensível para mim, o complemento da
criação, como escreve o profeta Isaias (cf. Is 11, 6-9). Certamente os meus
pensamentos não são de “alta teologia”, porém, ajudam-me a responder minhas
perguntas e minhas dúvidas.
Se Deus é amor infinito e misericórdia
infinita, então o amor e a compaixão são as características mais nobres para
nós, seres humanos, como imagem de Deus, embora numa dimensão limitada e
finita. Se Deus nos acomapnha com compaixão no nosso caminho para a integridade
e plenitude, nós somos chamados a acompanhar a criação, que dominamos, a vida
que nos foi confiada, as pessoas que caminham conosco na misericórdia e na
compaixão. Se Deus “se compadece ” de nossa imperfeição temporal, “nos respeita”,
então, também nós devemos mostrar compaixão a quem é infeliz e desolado. Isto
quer dizer não somente olhar adiante, para não desviar do caminho certo, mas
também olhar ao nosso redor, ver se aqueles que estão próximos – precisam da
nossa ajuda.
E esses certamente precisam. Isto é o que solicitam
as chamadas obras de misericórdia corporais: (conforme o Evangelho de Mateus
25, 35-40) que nos falam das necesssidades humanas fundamentais e colocam em
evidência o compromisso das pessoas. As obras de misericórdia espirituais,
formuladas por Santo Agostinho, a maioria delas se referem, à relação
interpessoal, dando ênfase à necessidade da relação interpessoal entre os seres
humanos.
Um dos fundamentos da espiritualidade palotina
é que cada pessoa humana foi criada à semelhança de Deus. Isto não é um
privilégio que nos autoriza a fazer o que nós queremos, e certamente não à
destruição da vida e à exploração selvagem da terra, mas somos chamados a assumir
a atitude de Deus no seu respeito pela criação, no seu amor e na sua misericórdia.
Esta é a nossa vocação. Fundamentalmente, a caridade é institucionalizada em
nossa sociedade moderna do bem-estar, e por isso, não são poucos aqueles que a consideram
como uma coisa pública e não como um chamado ao empenho pessoal. A minha profissão
de médico, porém, me mostra claramente, que a relação, baseada na compaixão, na
misericórdia, na atenção amorosa, deve ser uma coisa pessoal se quer produzir
fruto e ser eficaz.
Respeito pela vida. O que dizer para mim? E o
que significa para nós, família Palotina? Eu penso que quer dizer, olhar com
amor todas as criaturas, com as quais São Vicente Pallotti desejava estar unido
no Cenáculo, também com todas as coisas criadas: sermos prudentes e atenciosos.
Tal atitude certamente poderá fazer do mundo um lugar melhor.
Alois
Wittmann UAC
Alemanha.