domingo, 23 de março de 2014

A Cananeia



O Grupo de Teatro Pe. Andrzej Gladysz da paróquia de Santíssimo Nome de Jesus em Odivelas apresenta “A Cananeia” um Auto de Gil Vicente.
Jesus é interpelado por uma mulher estrangeira, uma Cananeia. “Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim”.

Esta afirmação prova a sua fé na divindade de Cristo – ela não chama pelo profeta, não chama pelo fazedor de milagres. Ela chama pelo Messias prometido ao povo escolhido. Sabe com quem está a falar. E por isso insiste, de longe. “Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim”.


Ora a compaixão, o que é? É viver a paixão do outro. É sentir (com) o que o outro sente (paixão). E o que sentimos mais quando aqueles que amamos sofrem? Que poderemos sentir, se eles sofrem, a não ser compartilhar (com+partilhar = sentir ao partilhar)?


Mas Jesus tem palavras duras, como poucas vezes teve ao longo dos Evangelhos: “Eu não fui enviado senão para as ovelhas perdidas da casa de Israel. Quereis que se tire aos filhos para dar aos cães?”
Esta resposta inquieta muitas vezes quem a lê pela primeira vez. Como poderá isto ser, se Jesus é amor? Como poderá assim chamar cães aos estrangeiros – a nós todos, portanto? Como poderá ele amar quem despreza?


Recordemos que na época de Jesus os cães não tinham nem de longe o lugar que hoje ocupam na nossa sociedade, em que por vezes são tratados quase como gente – ou mesmo mais do que gente. Na Israel da época, os cães eram cães – eram bichos que rondavam os povoados, ou que ajudavam os pastores, ou que guardavam as propriedades. Apenas bichos. E bichos de pouca monta, abaixo dos cavalos, por exemplo. Então, se Jesus nos diz que somos cães, está a dizer que somos desprezíveis? Como pode isto ser?


A resposta da Cananeia vem mostrar a sua fé incondicional. “Até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seu senhor.” 


A Cananeia sabe que está infinitamente abaixo quer da escala divina, quer mesmo da escala humana. Era estrangeira – era mulher – era portanto desprezível. A afirmação da sua pequenez não a assusta, não a incomoda. Ela sabe que é ínfima. Aliás, a doença da filha já lho tinha mostrado, já lhe tinha provado que nada podia fazer perante os gritos e gemidos daquela menina que tanto amava. 


Quantas vezes nos aconteceu já também isto mesmo – pensamos que somos alguém, pensamos que sabemos muito e que podemos muitas coisas – até que uma doença, uma morte, uma desavença nos prova o contrário. Não somos nada. Eu diria mesmo que somos menos do que cães – os cães confiam no seu dono, e esperam dele que os salve. E nós não confiamos assim tanto em quem nos pode salvar. Não olhamos com os mesmos olhos abandonados e expectantes os dons que nos vêm do Alto. Somos bem menos do que cães. 


“Até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seu senhor.” Com esta frase, a mulher Cananeia prova que espera tudo de Deus. Mostra a sua fé inquebrantável, a sua confiança absoluta, a sua teimosia perante o aparente silêncio de Deus. Eu ou tu talvez desistíssemos. Talvez disséssemos – Ele não ouve, Ele não quer saber de mim, Ele não responde às minhas preces. E Talvez nos zangássemos com Deus. Talvez abandonássemos a Sua Igreja. Talvez procurássemos o barulho noutras vidas, noutras igrejas, noutros lados. A Cananeia, não. Manteve-se ali firme, à espera, insistente. E alcançou o seu objetivo. 


É este o episódio que tanto maravilhava Dona Violante, Abadessa do Mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo, hoje conhecido como Convento de Odivelas. 


Esta senhora era irmã de Vasco da Gama, o mesmo que descobriu o caminho marítimo para a Índia. Era uma senhora culta, muito conhecida como virtuosa e santa. Sendo da nobreza, conhecia a obra de Gil Vicente, dramaturgo que por essa época animava os serões da corte portuguesa. Fez-lhe portanto um pedido – que ele escrevesse uma peça em que se apresentasse o seu episódio favorito nos Evangelhos.


Gil Vicente escreve um pequeno texto em que nos faz meditar no poder da oração, no poder da fé. Em que explicasse como devemos rezar, quando, como devemos sentir-nos e o que devemos dizer. 


Apresenta inicialmente três pastoras, que nos fazem o resumo da história da salvação: primeiramente surge uma pastora de veados, Silvestra, Lei da Natureza. Os veados representam aqueles que não conhecem o Deus verdadeiro. A ela junta-se uma pastora de carneiros, Hebreia, Lei da Escritura. Os carneiros representam os judeus – conhecem o Deus verdadeiro mas não aceitaram Cristo apesar de Ele ser o Messias esperado e anunciado pelos profetas. A terceira pastora, Veredina, Lei da Graça, representa os cristãos, aqueles que ouvem e seguem o Mestre – verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. É Veredina que anuncia que Jesus já veio e anda pregando, e que o próprio Satanás se deu por vencido, apesar das várias tentações que lhe apresentou.


A presença de um elemento cómico é frequente no teatro Vicentino. Aqui, são os diabos esse elemento. O que é curioso é que estes diabos são quem vai provar que Jesus é Deus – o que aliás não nos espanta. O Mal conhece o Bem, mas recusa-se a aceitá-lo. O Príncipe das Trevas começou por ser um anjo de Deus, mas revoltou-se contra Ele e caiu no abismo. Surgem então Jesus e os seus discípulos Pedro, Tiago e João. E a Cananeia. A figura da Cananeia é a da fidelidade, da persistência, de fé inquebrantável. Perante todas as dificuldades, mesmo perante o silêncio de Deus, ela não desiste. E pede. E adora a Deus em verdade.


E reza sem cansar, sem desistir. Mesmo perante a aparente recusa divina em aceder ao seu pedido. Contra tudo e contra todos. Seja assim também a nossa oração. Fiel, persistente, contra todas as marés. Sejamos Cananeia, e o Senhor atender-nos-á e chamar-nos-á à Sua Glória.
Margarida Athayde Campos

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