Deus Amor Infinito
Meditação XXX, (OOCC XIII, pp. 161-166)
“O amor infinito e a infinita Misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo na eleição dos doze Apóstolos”
Quando li o título desta meditação, a minha reação espontânea foi: “Oh! Não, oh Senhor, porque este tema? Por que eu?
Embora sacerdote, é para mim um desafio escrever com honestidade sobre o tema da meditação de S. Vicente sobre o sacerdócio ministerial tendo alguma possibilidade de ser edificante para uma variedade de pessoas que lerão esta reflexão. Mas, depois veio-me à memória a imagem do grãozinho de areia ou de algum outro pequeno objeto que age como irritação ou ainda como a ostra que depois forma a pérola. Pode ser que quando vivemos os fatos com um pouco de desgosto, quando somos constrangidos a lutar para refletir mais profundamente sobre um âmbito que encontramos provocatório, algo de precioso pode provir dele. Ao menos essa é a minha esperança.
Por que para mim esse tema è um desafio? Talvez porque venho de uma cultura na qual as ações profundamente prejudiciais de alguns membros do sacerdócio ministerial constituíram parte dos interesses quotidianos dos meios de comunicação por quase 20 anos; dificuldades seriamente agravadas pelas respostas geralmente insuficientes de muitos superiores religiosos e bispos em enfrentar de maneira justa, compassiva, decidida e transparente a dor daqueles que foram profundamente feridos pelos abusos da parte dos ministros ordenados, bem como para proteger outras pessoas jovens e vulneráveis de danos futuros pela mão daqueles mesmos ministros. Sérias perguntas foram levantadas em mérito à uma adequada resposta da autoridade da Igreja em cada nível sobre este escândalo e esta crise. O sacerdócio ministerial, em geral, em nossa cultura, foi caracterizado por um clericalismo malsão onde os sacerdotes foram considerados, de alguma maneira, membros de uma casta superior àquela do cristianismo “ordinário”, de tal maneira que resultava, por exemplo, em termos práticos, parecer que o bem da Igreja residisse mais na proteção do bom nome deste sacerdócio que na proteção dos males contra os jovens e os vulneráveis. Os pastores da Igreja foram notados mais vezes pelo exercício da sua autoridade em um modo duro, prepotente e opressor; isto também contribuiu para deixar um sinal negativo em nossa cultura sobre a imagem de Deus e do sacerdócio ordenado que, como consequência, tantas pessoas ainda hoje têm esse conceito. E não penso que a nossa cultura seja a única informada desta maneira. Em tal clima, uma reflexão como aquela de S. Vicente Pallotti, a qual fala em termos inequívocos e positivos sobre o dom que é o sacerdócio ministerial, pode parecer um tanto incompleta. E, no entanto, S. Vicente não era um sonhador romântico; ele tinha consciência das faltas de tantos sacerdotes do seu tempo, da incapacidade de uma liderança na Igreja que havia reduzido o papel dos cristãos leigos àquele de pouco mais que expectadores no grande drama da história da salvação.
Todavia, a resposta de S. Vicente foi a fé, fé primeiramente no amor infalível de Deus, tornado visível para todos em Cristo, sendo cada um uma viva e única imagem e semelhança do amor e da bondade infinita de Deus. Mas fé também nos dons que Deus nos tem dado para continuar ajudando a tornar uma realidade tangível em nossa vida quotidiana este amor transformante. Ele inicia cada uma de suas 31 reflexões sobre “Deus Amor infinito” com a expressão “Iluminado pela Fé” ou alguma outra expressão semelhante. Somente com os olhos da fé é que podemos discernir o verdadeiro valor dos dons de Deus e da sua importância para a nossa vida e para a vida dos irmãos. Isto vale também para o dom do sacerdócio ministerial.
Que aspectos mais me tocam na sua reflexão? O seu fundamento claramente bíblico do chamado e do envio dos apóstolos e daqueles que os sucederiam no mesmo chamado e no mesmo envio de Jesus: a missão deles será, de maneira particular, uma partilha e uma continuação do chamado e do envio do próprio Jesus da parte do Pai. Foram enviados para anunciar a salvação de Cristo a todos, a proclamar o seu Reino ao mundo inteiro para o bem de todos, a tomar o seu lugar como “verdadeiros pastores”... para conduzir outros às verdadeiras pastagens de saúde eterna, “médicos espirituais”... para curar as enfermidades espirituais como “pais amorosos” para guardá-los no coração divino de Deus. É Jesus mesmo que opera mediante o seu ministério pastoral visível para comunicar a sua própria vida divina a todos nós de tal maneira que, escutar ou rejeitar a mensagem evangélica, significa escutar ou rejeitar o próprio Cristo e o Pai que o enviou.
E que missão! Se trata de uma missão aberta também a interpretações muitas vezes erradas e distorcidas na maneira pela qual é compreendida e vivida, como foi até mesmo bastante evidente na longa história da Igreja, às vezes manifestando um sentido de privilégio, distante do ideal evangélico de Cristo que veio para servir e não para ser servido; veio para doar a si mesmo sem reservas como a expressão mais profunda possível do infinito amor de Deus pela humanidade, com frequência ferida e perdida. S. Vicente usando os termos “pastores”, “doutores” e “pai” ele acena a um sacerdócio modelado sobre a compaixão e a ternura de Cristo, um sacerdócio que vive o chamado paradoxal de Cristo à grandeza de tornar-se o último de todos e o servo de todos.
E na visão de S. Vicente, este serviço não procura a dominação, mas é chamado a inspirar, reavivar, reacender, nutrir e desafiar, conhecendo também a própria necessidade de ser constantemente inspirado, reaceso, nutrido e desafiado pelo próprio Deus e, com frequência, operando mediante outros irmãos e irmãs da comunidade e, às vezes, nas mais improváveis e inesperadas maneiras. Para sermos autenticamente cristãos, tal serviço não pode ser entendido e nem realizado de maneira individualista, autosuficiente, ou de maneira paternalística, mas come se proviesse de um membro de uma família de iguais, cada um com sua dignidade, chamado com dons especiais e provindos de Deus. Cada um leva dentro de si um chamado implícito para aprender a colaborar como iguais, desde o início com outros, em cada estado de vida, na Igreja e também fora da mesma para edificar o Reino de Deus - reino de amor, de paz e de justiça em nosso mundo.
Sim, este é um chamado a uma missão particular na família de Deus, um chamado à liderança cristã, um chamado a exercitar um modo particular da autoridade de Cristo, mas uma maneira que seja sempre a serviço do bem dos outros, com a finalidade de ajudá-los a descobrir e exercer a plenitude da sua dignidade, liberdade e autoridade como filhos de Deus que partilham a vida mesma da SS. Trindade no mesmo sacerdócio de Cristo mediante o Batismo, como pessoas criadas à imagem e semelhança do amor, da sabedoria e da verdade infinitas. E, finalmente, é um chamado a permanecer em relação, colaborando com outros na construção de uma comunidade de amor e de verdade, de alegria e de paz, de compreensão e de justiça, de respeito recíproco e de encorajamento, de igualdade na diversidade, modelada sobre esta comunidade eterna de amor que é Deus mesmo.
Um meu amigo, sacerdote dos “Fatebenefratelli” que trabalha entre pessoas com dificuldades especiais, escreveu uma tese sobre a liderança cristã. Concluiu que ele mesmo se tornaria um líder como Cristo somente se tivesse aprendido a servir as necessidades mais profundas de uma pessoa particular com a qual tinha trabalhado e que carregava graves dificuldades de aprendizagem e com nenhuma comunicação verbal. Peçamos ao Deus de toda consolação que nos conceda o dom daquele tipo de liderança cristã nas nossas comunidades para que cada um de nós possa exercer esta autoridade de maneira tal que sirva para guiar outros à plena vida que Cristo deseja para nós como indivíduos e como membros da Igreja e da família humana.
Algumas perguntas para a reflexão à luz do nosso caminho quaresmal:
Qual é a minha experiência de liderança na comunidade cristã, na UAC?
Segundo seu modo de ver, em que consiste uma verdadeira liderança cristã? Existem pessoas que você conhece e que encarnaram essa liderança?
Como exercito a liderança/autoridade na minha própria vida? No trabalho? Na família?
Em que área de minha pessoa percebo que tenho ainda necessidade de crescer no serviço humilde e generoso e na colaboração com os outros?
Nenhum comentário:
Postar um comentário