quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O CARISMA DE PALLOTTI E O NOVO MILÊNIO

Esta homilia foi proferida pelo arcebispo Dom Francisco Javier Errázuriz, Secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, na igreja de San Salvatore in Onda, no dia 22 de janeiro de 1996. Ele é chileno, foi ordenado padre palotino em 17 de julho de 1961 e, quando sobreveio a separação entre Schönstatt e os Palotinos, passou para o Instituto dos Padres de Schönstatt. Foi superior geral do Instituto por 12 anos e tinha sido reeleito por mais um período de igual duração, quando foi nomeado Secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Hoje é Arcebispo de Santiago do Chile.
 
Queridos irmãos e irmãs no Senhor.

Quando todos vós, como representantes das distintas comunidades espirituais que participam do carisma de São Vicente Pallotti, vos reunis junto aos seus restos mortais, o encontro acontece num lugar que está unido inseparavelmente a sua santidade e ao seu carisma, e aos incontáveis dons de Deus deste jubileu, com o qual comemoramos o segundo centenário do seu nascimento.
A celebração da sua festa ocorre no dia 22 de janeiro, isto é, no mesmo dia do seu nascimento para o céu. Por isso nossa ação de graças se dirige ao Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo dom que fez à Igreja mediante o carisma de São Vicente Pallotti, o qual seria impensável sem sua santidade, sem sua heróica doação à Igreja e aos que sofrem, sem suas fundações, sem sua visão profética da vocação de todos os batizados e sem os grandes projetos do seu coração.
Nesta tarde, reavivamos nossa fé na Páscoa do Senhor e nos comprometemos seguir as pegadas de São Vicente, meditando sobre o espírito que caraterizou o Santo Fundador e sobre a atualidade do seu carisma. São dois aspetos essenciais do patrimônio espiritual dos que o chamam com profundo afeto nosso pai, nosso santo e nosso fundador.

1.O espírito do fundador

Quando, há mais de 40 anos, conheci os traços caraterísticos de sua espiritualidade e de sua vida, a personalidade de São Vicente Pallotti me amedrontava (abrumava.). O mesmo acontecia com São Paulo e com meu santo patrono, São Francisco Xavier. Tanta presença de Deus num ser humano, tanta força do amor de Cristo, tanta capacidade de unir a própria vida aos sofrimentos redentores do Senhor, tanta intensidade de ação apostólica em favor dos mais necessitados, tudo me superava amplamente. Nem sequer me atrevia a pensar que um santo dessas proporções poderia ser imitado ou compreendido. Pensava no meu interior: só se pode admirá-lo. É possível que alguns de vós tenham tido uma impressão semelhante.
Entrementes, passaram-se os anos. Conheci personalidades santas, também santos fundadores e fundadoras dos nossos dias. Os santos deixaram de ser seres distantes e passaram a ser meus familiares, meus irmãos santos. Agora os reconheço como uma manifestação extraordinária, próxima e maravilhosa do amor de Deus. São Vicente Pallotti ocupa entre eles um lugar especial, porque foi e continua sendo, como o expressou o Santo Padre no início das celebrações do segundo centenário de seu nascimento, “o dom feito à Igreja daquela testemunha da fé cristã que viveu em plenitude o amor evangélico”. Aí estão seu segredo e seu mistério, sua grandeza e sua fecundidade: “viveu em plenitude o amor evangélico”.
A divisa, que o santo escolheu para si e para sua obra ,”o amor de Cristo nos urge” ilumina toda sua existência e sua ação apostólica. Atrevo-me inclusive a pensar que a vida e a atividade pastoral de São Vicente, como cristão, sacerdote e fundador, permitem-nos compreender com maior profundidade as palavras de São Paulo: “Caritas Christi urget nos”.
À primeira vista, em sua vida, sobressaem duas dimensões centrais do amor de Cristo: a revelação do amor de Deus a cada um de nós, e o impulso de amor ao próximo. Por isso o Santo Padre recordava na citada carta como a pregação de São Vicente “conduzia ao redescobrimento de Deus que é amor” e, ao buscar a fonte da proclamação do Evangelho do amor feita pelo Santo, nos dizia que “ella tinha seu fundamento na experiência pessoal de sentir-se amado por Deus, sem condições e sem limites”.
A condução de Deus a uma experiência verdadeiramente mística do seu amor - do amor imerecido, do amor total, sem condições nem limites, do amor superabundante até à entrega da vida do Filho por nossa salvação, do amor repleto de ternura, de perdão e de força, infinito em sua sabedoria e em sua misericórdia -, permite-nos intuir até que ponto esta experiência o aferrou profundamente. Ela o levou a contemplar a insignificância de sua própria existência, considerando-se a si mesmo como “nada e pecado”, e a por todos seus pensamentos e suas obras na constante presença de Deus. Em São Vicente, a caridade do Deus infinito, manifestada através do amor insondável de Cristo, era a torrente de água viva que vivificava toda sua existência.
Da urgência deste amor foram testemunhas privilegiadas os confessionários e os púlpitos de tantas igrejas, as ruas de Roma e outras cidades e povoados da Itália, as escolas, os cárceres, os quartéis, os seminários e os hospitais. Ao ver seus sapatos surrados, podemos imaginar como se consumia este sacerdote da caridade, da caridade evangelizadora, fazendo o bem a todos os necessitados. Esta segunda dimensão de seu lema, que o levou a sonhar com as “procuradorias” de sua obra, como outras tantas expressões da misericórdia evangélica, é o eco que teve em sua alma a caridade do próprio Cristo, descrita por São Paulo no Hino da Carta aos Coríntios, que escutamos como segunda leitura. Não podia ser de outra maneira. São Vicente, em inumeráveis ocasiões, pregou que o ser humano foi criado e recriado à imagem de Deus. Se sua experiência pessoal do Senhor era a de um Deus, que é amor infinito, de que outro modo pode ser ele sua imagem, senão refletindo a ilimitada bondade e a incansável misericórdia de seu modelo, Cristo?
“Caritas Christi urget me” era o impulso do Santo, também quando prolongava em sua vida o amor de Cristo à sua Santíssima Mãe. Unia-o a ela, como dom de Deus, uma relação singularmente profunda e uma adesão total a sua missão como Rainha dos Apóstolos. Esta invocação tão sua não era para ele um título a mais de Nossa Senhora. A imagem de Maria, reunida com os Apóstolos e abrindo seu espírito ao fogo do Espírito Santo, revela-nos todo o dinamismo da divisa que deixara à sua família espiritual. Quando dizemos “a caridade de Cristo nos urge”, não podemos esquecer a pofecia de Ezequiel, que se cumpriu no cenáculo: “ Infundirei em vós meu espírito”. Por isso, dizer que “a caridade de Cristo nos urge” é dizer que o Espírito de Cristo nos urge; é anunciar que o sopro de vida que procede do alto nos urge; que a força poderosa e suave do amor divino, o fogo da santidade de Deus, o vento impetuoso que renova todas as coisas nos urge; é confessar que a torrente de água viva que é o Espírito Santo nos urge. E nesta mesma imagem de Maria no Cenáculo, rodeada dos Apóstolos, encontramos as primeiras origens e o ímpeto missionário da União do Apostolado Católico. O mesmo amor de Cristo, que fazia arder São Vicente pela salvação das almas, levou-o a sonhar com a união e a colaboração de todos os que aderissem ao projeto de comunhão e de missão, que recebera de Deus para “reavivar a fé” e “acender de novo a caridade” e levar estes dons a todo mundo. Um projeto irrealizável, se não fosse guiado por Pedro, se não recebesse o alento da presença e o amor de Maria e se não fosse impelido pelo fogo interior e a força do Espírito Santo.

2. Rumo ao Terceiro Milênio

Queridos irmãos e irmãs, às vezes as famílias espirituais são assaltadas pela dúvida quanto à vigência do seu carisma. Uma dúvida que não deveria ter cabimento na Família palotina. Atrevo-me a pensar que a atualidade do carisma de São Vicente Pallotti aparece, no umbral do terceiro milênio, com maior nitidez que antes. Mais ainda agora, ao refletirmos sobre os desafios lançados pelo Santo Padre na sua Carta Apostólica “Tertio Millennio Adveniente”, talvez como nunca antes compreendemos as verdadeiras proporções e a atualidade do carisma e da missão de São Vicente Pallotti.
Consideremos brevemente alguns poucos aspetos do grande projeto pastoral, que esboçou o Santo Padre em sua Carta Apostólica, à luz do texto do Evangelho, que foi proclamado, e da herança espiritual de São Vicente Pallotti.

1. Nosso Senhor pede ao Pai que seus discípulos sejam santificados na verdade. Esta verdade resplandece na experiência de Deus do Santo Fundador: vivia extremecido pela imensidade e a insondável realidade do Deus infinito. Como o descrevia um dos seus filhos espirituais, Pe. José Kentenich, poucos meses antes da beatificação de São Vicente, a vida do santo evoca o fogo inextinguível da sarça ardente, incendiada pela presença e o amor de Deus. Os que se aproximavam dele intuiam a voz de Deus: tira o calçado, afasta de ti o que tens de mundano; o lugar que pisas é terra santa!
a) No contexto da celebração da vinda de Cristo, não necessitaria cada um de nós, não necessitaria toda a Igreja algo da amplidão, da profundidade e da intensidade da experiência de Deus que teve São Vicente Pallotti, para contemplar as dimensões incomensuráveis do mistério da Encarnação e da Redenção e do projeto de Deus para os povos aos quais somos enviados? Não necessitamos desta experiência, se queremos unir, como São Vicente, a realidade do Deus infinito com a sede de Deus e de humanidade de nossos contemporâneos?
b) Por outra parte, a nova evangelização, que inclui a conversão de milhões de homens e de mulheres ao Evangelho, depois de terem perdido a fé, não exige um sem número de cristãos que vivam “em plenitude o amor evangélico”, como São Vicente Pallotti? Não pede uma legião de jovens e de adultos que assombrem o mundo com sua maneira de amar e de crer, com seu espírito de serviço e sua esperança, com sua audácia e sua coerência, com sua compaixão, seu espírito de justiça e de perdão, sua misericórdia e sua plenitude de vida? É inútil imaginar que um cristianismo medíocre, que pactuou com o espírito do mundo, seja capaz de aproximar os homens de Cristo. A primeira leitura nos recordava esta verdade tão cristã e tão palotina: brilharão como a aurora, serão como um jardim regado e como uma fonte cujas águas não deixam com sede os que se sentem urgidos pelo amor de Cristo e enchem de estupor seus irmãos, ao dividirem seu pão com os famintos, ao acolherem em sua casa os sem-teto e ao vestirem os nus, isto é, imitando a superabundante misericórdia de Jesus.
c) Uma terceira consideração em vista dos desafios do terceiro milênio. A mística do Deus infinito de São Vicente Pallotti não é acaso um grande dom de Deus para a Igreja de nossos dias, numa hora em que se torna imprescindível o diálogo ecumênico e inter-religioso? Atualmente, numerosas vozes afirmam que o fundamento existencial para um diálogo fecundo entre representantes de distintas religiões se dá somente naqueles que são tomados pelo mistério de Deus, como São Vicente.

2. A última reflexão refere-se à petição de Jesus ao Pai, que acabamos de escutar: “Faze que sejam todos uma só coisa: como tu, Pai, estás em mim e eu estou em ti, também eles estejam em nós, assim o mundo crerá que tu me enviaste”.
Tanto a preparação para o ano 2000 como sobretudo o programa da nova evangelização, que devemos empreender no terceiro milênio, são projetos universais, verdadeiramente católicos. De nada serve a dispersão ou a desunião das forças. Se estas acontecessem, o mundo não creria que Cristo foi enviado pelo Pai. Somente a unidade, que provém de Deus e que recorda a união de Cristo com seu Pai, somente a unidade dessa maravilhosa pluralidade de carismas e ministérios, que manifestam a sabedoria infinita de Deus, pode abordar um programa que tem as dimensões das obras da Santíssima Trindade. Isso exige, nos distintos níveis, o encontro e o concerto das iniciativas, para que empreendam juntas seu caminho evangelizador até os confins do mundo e até a raiz dos corações humanos e das culturas. Será essencial a colaboração de todas as forças, para que a Comunhão da Igreja se expresse numa União missionária. Como não valorizar a esta luz os esforços que vós fizestes para constituir a União do Apostolado Católico e para dar-lhe o necessário dinamismo de maneira a realizar o sonho de São Vicente Pallotti e a inspirar adesão a suas iniciativas proféticas?
Queridos irmãos e irmãs, só quero terminar com um desejo, que confio à onipotência e à benignidade de Deus, pela intercessão de Maria, Rainha dos Apóstolos: queira o Espírito Santo acender em vós e em todos os membros da União, o fogo de seu amor, para que também vós sejais como uma sarça ardente, um lugar de encontro e de aliança do Deus infinito com muitos cristãos e com nosso mundo.
 Tradução do
Pe. João B. Quaini

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